Imaculada Conceição da Maria
150 anos de Proclamação do Dogma
Frei Clarêncio Neotti, OFM
150 anos de Proclamação do Dogma
Frei Clarêncio Neotti, OFM
Estamos
diante de um mistério. Ou seja: diante de um fato que nossa inteligência, por
ser conhecidamente limitada, não consegue abranger nem explicar por inteiro. O
mistério não contradiz a razão humana, mas a excede.
O privilégio
da Imaculada Conceição não se refere ao fato de Maria de Nazaré ter sido virgem
antes, durante e depois do parto de Jesus.
Não se refere
ao fato de ter ela concebido o filho sem o concurso de homem, mas por obra e
graça do Espírito Santo. Não se refere ao fato de Maria não ter cometido nenhum
dos pecados que nós costumamos fazer, confessar e nos esforçamos por evitar.
Refere-se ao fato de Deus havê-la preservado da mancha com que todas as
criaturas humanas nascem, mancha herdada do pecado cometido por Adão e Eva. A
teologia chama esta mancha de “pecado original”. Original, não porque nascemos
como fruto de um ato sexual. Mas original, porque se refere à origem de toda a
humanidade, ou seja, aos nossos primeiros pais, que a Bíblia chama de Adão e
Eva.
A Sagrada
Escritura ensina-nos que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança. Não
o fez por necessidade, mas num gratuito gesto de amor. Criado por amor, o ser
humano estava destinado a uma plena e eterna comunhão com Deus. Comunhão tão
íntima e divina, que o próprio Filho de Deus dela poderia participar sem
nenhuma diminuição de sua divindade.
Ora, para o
Filho de Deus encarnar-se, Deus havia escolhido desde sempre uma mulher e a
havia imaginado santíssima, ou seja, adornada com todas as qualidades e belezas
do próprio Deus. Para Deus, imaginação e criação é a mesma coisa.
Aconteceu, no
entanto, o grande transtorno: nossos primeiros pais, apesar de feitos à imagem
e semelhança de Deus, eram criaturas e como criaturas dependiam do Criador. Sua
liberdade era a plenitude da liberdade como criaturas. Adão e Eva pecaram,
querendo passar da liberdade e santidade de criaturas à liberdade e santidade
do Criador, ou seja, quiseram igualar-se a Deus. Pecado de orgulho. Um pecado
de desobediência à condição de criaturas, querendo a condição do Criador. Eles
quiseram “ser como Deus” (Gn 3,5). Eles quiseram comportar-se como Deus e não
como criaturas de Deus.
A Sagrada
Escritura fala das conseqüências dramáticas dessa prepotência dos nossos
primeiros pais: embora mantendo a dignidade de imagem e semelhança de Deus,
perderam, como diz São Paulo “a graça da santidade original” (Rm 3,23),
passaram a ter medo de Deus, perderam o equilíbrio de criaturas, ou seja, foram
tomados pelas más inclinações e passaram a sentir em sua consciência a
desarmonia e a tensão entre o bem e o mal e a experiência da terrível
necessidade de optar entre um e outro, e “a morte entrou na história da
humanidade” (Rm 5,12).
Ora, os
planos de Deus, ainda que as criaturas os desviem ou quebrem ou não os queiram,
acabam se realizando.
Aquela mulher
imaginada (criada) por Deus antes do paraíso terrestre, para ser a Mãe do Filho
em carne humana, estava isenta do pecado de Adão e Eva. Há, porém, uma verdade
de fé professada pela Igreja, que ensina que todas as criaturas humanas são
redimidas, sem exceção, exclusivamente pelos méritos de Jesus Cristo. Ora,
Maria é uma criatura e não uma deusa. Por isso, também ela deveria ter sido
redimida por Jesus.
Os teólogos
discutiram durante séculos sobre como Maria poderia ter sido remida. Nunca,
nenhum santo Padre duvidou da santidade de Maria, de sua vida puríssima, de seu
coração inteiramente voltado para Deus, ou seja, de ser uma mulher “cheia de
graça” (Lc 1,28). Mas, ainda que a pudessem imaginar imaculada, havia teólogos
que não conseguiam argumentos teológicos suficientes para crê-la isenta do
pecado original. Um deles, por exemplo, foi São Bernardo, autor de belíssimos
textos sobre Nossa Senhora, insuperável na descrição da maternidade divina de
Maria.
Entre os
teólogos favoráveis à imaculada conceição de Maria devemos mencionar o
Bem-aventurado Duns Scotus, que argumentava assim: Deus podia criá-la sem
mancha, porque a Deus nada é impossível (Lc 1,37); convinha que Deus a criasse
sem mancha, porque ela estava predestinada a ser a Mãe do Filho de Deus e,
portanto, ter todas as qualidades que não obnubilassem o filho; se Deus podia,
se convinha, Deus a criou isenta do pecado original, ou seja, imaculada antes,
durante e depois de sua conceição no seio de sua mãe.
Em 1615
encontramos o povo de Sevilha, na Espanha, cantando pelas ruas alguns versos,
derivados do argumento de Duns Scotus: “Quis e não pôde? Não é Deus / Pôde e
não quis? Não é Filho. / Digam, pois, que pôde e quis”.
Também os
artistas entraram na procissão dos que louvavam e difundiam a devoção à
Imaculada. Nenhum foi tão feliz quanto o espanhol Murillo, falecido em 1682. A
ele se atribuem 41 diferentes quadros da Imaculada, inconfundíveis, sempre a
Virgem em atitude de assunta, cercada de anjos, a meia lua sob os pés,
lembrando de perto a mulher descrita pelo Apocalipse: “revestida de sol, com a
lua debaixo dos pés” (Ap 12,1). A lua, por variar tanto, é símbolo da
instabilidade humana e das coisas passageiras. Maria foi sempre a mesma, sem nenhum
pecado.
“No entanto,
escreve o Santo Padre Pio IX, era absolutamente justo que, como tinha um Pai no
céu, que os Serafins exaltam como três vezes santo, o Unigênito tivesse também
uma Mãe na terra, em quem jamais faltasse o esplendor da santidade. Com efeito,
essa doutrina se apossou de tal forma dos corações e da inteligência dos nossos
antepassados, que deles se fez ouvir uma singular e maravilhosa linguagem.
Muitas vezes se dirigiram à Mãe de Deus como a toda santa, a inocentíssima, a
mais pura, santa e alheia a toda mancha de pecado, … mais formosa que a beleza,
mais amável que o encanto, mais santa que a santidade, … a sede única das
graças do Santíssimo Espírito, sendo, à exceção de Deus, a mais excelente de
todos os homens, por natureza, e até mesmo mais que os próprios querubins e
serafins. E para a decantarem os céus e a terra não acham palavras que lhes
bastem” (Ineffabilis Dei, 31).
No dia 8 de
dezembro de 1854, o bem-aventurado Papa Pio IX declarou verdade de fé a
conceição imaculada de Maria. O dogma soa assim: “Pela inspiração do Espírito
Santo Paráclito, para honra da santa e indivisa Trindade, para glória e adorno
da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica e para a propagação da
religião católica, com a autoridade de Jesus Cristo, Senhor nosso, dos
bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e nossa, declaramos, promulgamos e
definimos que a Bem-aventurada Virgem Maria, no primeiro instante de sua
conceição, foi preservada de toda mancha de pecado original, por singular graça
e privilégio do Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador
dos homens, e que esta doutrina está contida na Revelação Divina, devendo,
portanto, ser crida firme e para sempre por todos os fiéis” (Ineffabilis Dei,
42).
Celebramos em
2004 os 150 anos do dogma. Mas a devoção à Imaculada é muito antiga. Basta
lembrar que a festa é conhecida já no século VIII. Desde 1263, a Ordem
Franciscana celebrou com muita solenidade a Imaculada Conceição, no dia 8 de
dezembro de cada ano e costumava cantar a Missa em sua honra aos sábados. Em
1476, o Papa Xisto IV colocou a festa no calendário litúrgico da Igreja. Em
1484, Santa Beatriz da Silva, filha de pais portugueses, fundou uma Ordem
contemplativa de mulheres, conhecidas como Irmãs Concepcionistas, para venerar
especialmente e difundir o privilégio mariano da Imaculada Conceição de Maria,
Mãe de Deus.
Desde a
proclamação do dogma, a festa da Imaculada Conceição passou a ser dia santo de
preceito.
Em Roma, na
Praça Espanha, para perenizar publicamente a declaração do dogma, levantou-se
uma belíssima e trabalhada coluna encimada pela estátua da Imaculada Conceição.
Todos os anos, no dia 8 de dezembro à tarde, o Papa costuma ir à Praça e com o
povo romano e os peregrinos reverenciar o privilégio da imaculada conceição da
santíssima Virgem, privilégio que deriva de seu título maior: ser a Mãe do
Filho de Deus Salvador.
Nem quatro
anos depois de proclamado o dogma, em Lourdes, na França, à menina Bernardete,
simples e analfabeta, que perguntava insistentemente à visão quem era ela,
recebeu como resposta, cercada de terníssimo sorriso: “Eu sou a Imaculada
Conceição”.
Não podemos
esquecer que a estátua de Nossa Senhora Aparecida é uma Imaculada Conceição e
por isso mesmo seu título oficial é Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Como
é bonito, piedoso e comovente escutar o povo brasileiro cantando uníssono: Viva
a Mãe de Deus e nossa / sem pecado concebida! / salve, Virgem Imaculada, / ó
Senhora Aparecida!
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